April 29, 2016
Carlos de Pontes Leça [1938—2016] - TNSC Teatro Nacional de São Carlos
Carlos de Pontes Leça [1938—2016] - TNSC Teatro Nacional de São Carlos

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Carlos de Pontes Leça [1938—2016]

Em homenagem a Carlos de Pontes Leça [1938—2016], musicólogo e programador cultural, publicamos o seu texto incluído no programa de sala da ópera Dialogues des Carmélites, de Francis Poulenc, apresentada em fevereiro, no âmbito da Temporada Lírica 2015—2016.


“Le transfert de la grâce”
segundo Bernanos e Poulenc
por Carlos de Pontes Leça


Da Revolução Francesa a Georges Bernanos

Paris, 17 de Julho de 1794 (dez dias antes do termo do Período do Terror). Dezasseis freiras carmelitas do convento de Compiègne são guilhotinadas na Place du Trône (actual Place de La Nation), com base na acusação de suposta conivência com actividades contra-revolucionárias [1]. Deste facto e dos seus antecedentes ficou-nos uma narração feita pela única freira dessa comunidade que, por circunstâncias fortuitas, escapou ao martírio: Madre Marie de l´Incarnation (de seu nome civil Françoise-Geneviève Philippe) [2].

Com base nessa narração, a escritora alemã Gertrud von Le Fort (1876-1971) publicou em 1931 uma novela intitulada Die Letzte am Schaffot (“A Última no Cadafalso”), aliás a primeira das suas obras representativas. Le Fort, de família luterana, tinha-se convertido ao catolicismo em 1926, e essa conversão acabou por marcar toda a sua restante carreira literária.

Em relação à realidade histórica, Le Fort introduz em Die Letzte am Schaffot várias alterações. Uma delas é a morte antecipada e angustiada da primeira Madre Superiora, Madame de Croissy. Mas a mais importante, e fundamental, é a criação da personagem ficcional de Blanche de La Force. Blanche é uma jovem aristocrata, frágil e sofrendo de um medo patológico, que nos tempos conturbados da Revolução Francesa ingressa como noviça no convento das Carmelitas de Compiègne. Que, no momento de fazer um voto extraordinário de martírio, foge do convento, tomada de pânico. E que finalmente regressa para junto das suas companheiras, para ser guilhotinada com elas.

Gertrud von Le Fort declarou que o perfil psicológico de Blanche estava já presente no seu espírito antes de decidir escrever uma novela sobre as Carmelitas de Compiègne. Entre esta personagem e a sua autora existe uma afinidade temperamental que se traduz inclusivamente na semelhança dos respectivos nomes (Le Fort – La Force). Subjacente a esta obra está também o medo experimentado pela escritora em relação com o pressentimento do horror que em breve iria abater-se sobre a Alemanha.

O tema essencial da novela é, de facto, o medo. Blanche é, de certo modo, uma mulher predestinada para viver no medo, pelas circunstâncias do seu nascimento: um parto prematuro na sequência de um acidente mortal sofrido pela mãe em 1770, por entre o tumulto originado por uma explosão de fogos de artifício nas festas de casamento do Delfim – futuro Luís XVI –com Marie Antonieta de Habsburgo.


[1] Passado pouco mais de um século, em 1906, estas dezasseis carmelitas foram beatificadas pelo Papa Pio X.

[2] Essa narração foi publicada em 1833. Existe uma edição recente: La Relation du martyre des seize carmélites de Compiègne, Paris, Le Cerf, 1993.


Mas o medo de Blanche ultrapassa largamente as circunstâncias do seu nascimento, bem como as da violência revolucionária que a vai cercando. É um medo omnímodo em relação a si própria e a todo o mal que existe no mundo. Um medo que só será finalmente superado mediante uma intensa vivência espiritual-religiosa.

Em 1937, por iniciativa do filósofo Jacques Maritain, surge a primeira tradução francesa da novela, com o título La Dernière à l´Échafaud. E dez anos mais tarde George Bernanos (1888-1948) é convidado pelo realizador Philippe Agostini e pelo padre dominicano Raymond Léopold Bruckberger para escrever os diálogos de uma versão cinematográfica, cujo guião já tinha sido elaborado por eles próprios. Deste guião consta a introdução de mais uma personagem ficcional: o irmão de Blanche, denominado como Chevalier de la Force.

Bernanos dedica-se intensamente a este trabalho entre Janeiro e Março de 1948. Será a sua obra derradeira, pois virá a morrer, vítima de cancro, no dia 5 de Julho.

Afinal os diálogos não virão a ser utilizados no contexto para que foram criados, por terem sido considerados pouco cinematográficos. O filme em questão virá a ser realizado só em 1960 [3] mas com inclusão de excertos dos diálogos de Bernanos apenas de modo muito fragmentado, intercalados no texto que é fundamentalmente da responsabilidade dos realizadores. E ao conjunto do filme falta o que podemos designar como espírito bernanosiano.

Mas entretanto o texto de Bernanos é publicado postumamente em 1949, pela primeira vez com o título Dialogues des Carmélites, por iniciativa do seu executor testamentário Albert Béguin. E, com uma adaptação feita pelo próprio Béguin e por MarcelleTassencourt, passa a ter existência autónoma como peça de teatro. A estreia absoluta tem lugar no Schauspielhaus de Zurique em Maio de 1951 (em versão alemã) e no Théâtre Hébertot de Paris em Maio de 1952. Seguiram-se espectáculos em vários outros países.

Portugal foi um desses países. A peça foi apresentada em Lisboa, no Teatro Nacional D. Maria II, na temporada 1959/60 (portanto posteriormente à estreia da ópera de Poulenc em São Carlos, que ocorrera em 1958), em tradução de Francisco Mata, com encenação de Pedro Lemos, cenário e figurinos de Lucien Donat. O elenco incluía algumas das figuras mais conhecidas do teatro português da época: Palmira Bastos (Madame de Croissy), Amélia Rey Colaço (Madame Lidoine), Mariana Rey Monteiro (Madre Marie de l´Incarnation), Catarina Avelar (Blanche), Teresa Mota(Constance), Luz Veloso (Madre Jeanne), Helena Félix (Irmã Matilde), Erico Braga (Marquês de La Force), Fernando Curado Ribeiro (Cavaleiro de La Force).


[3] O filme de Philippe Agostini e Raymond Bruckberger tem entre o seu elenco de intérpretes Jeanne Moreau (Madre Marie de l´Incarnation), Alida Valli (Madame Lidoine), Pascale Audret (Blanche de La Force), Madeleine Renaud (Madame de Croissy), Pierre Brasseur (Comissário da Revolução) e Jean-Louis Barrault (o Mimo, personagem inexistente na obra de Bernanos).


As Carmelitas de Bernanos

Georges Bernanos fez uma recriação radical da novela de Le Fort. Dramatizou a acção de modo exemplar, reduzindo-a ao essencial nos planos narrativo e psicológico. E sobretudo escreveu diálogos admiráveis, em vários dos quais se procede a um autêntico aprofundamento teológico sobre os temas da fé, do sofrimento, do martírio. E muito especialmente sobre o tema do medo e da sua superação mediante a comunhão dos santos, que é uma afirmação constante do Credo da Igreja Católica [4] (partilhada pela Igreja Ortodoxa e pela Igreja Anglicana). Segundo esta doutrina, o conjunto dos baptizados constitui uma comunidade espiritual plenamente solidária, em que cada um pode interceder pelos outros. Estão unidos entre si como membros de um corpo único: a saúde espiritual de cada um repercute-se positivamente na vida de todos os restantes, de um modo comparável a um sistema de vasos comunicantes. É neste sentido que, a respeito da obra de Bernanos, se fala de le transfert de la grâce: a “transferência” (isto é, a comunicação) da graça de Deus entre os crentes.

Poulenc referiu-se à importância desta temática em Dialogues des Carmélites nos seguintes termos: «Se é uma peça sobre o medo, é igualmente e sobretudo, a meu ver, uma peça sobre a graça e a transferência da graça» [5]. Essa “transferência da graça” dá-se entre a primeira Madre Superiora, Madame de Croissy, e Blanche, passando de algum modo através de outra jovem noviça, Constance de Saint-Denis.

Em epígrafe da peça, Bernanos cita palavras de outra obra sua, o romance La Joie: «Em certo sentido, o Medo é, apesar de tudo, filho de Deus, resgatado na noite de Sexta-Feira Santa. Não é belo de se ver – não! –, ora rejeitado, ora amaldiçoado, detestado por todos… E no entanto, não vos enganeis, está à cabeceira de cada agonia, a interceder pelo ser humano». Bernanos refere-se aqui à narração evangélica da agonia de Cristo em Getsemani, designadamente à que se contém em São Mateus 26, 37-39: «…começou a encher-se de tristeza e angústia. Disse-lhes então: “A minha alma está numa tristeza de morte” (…) Avançou um pouco mais e caiu de rosto por terra enquanto orava nestes termos: “Meu Pai, se é possível, que se afaste de mim este cálice. Todavia não se faça como Eu quero mas como Tu queres”».

Ao entrar no convento, Blanche escolhe precisamente ter como nome de religiosa Blanche de l´Agonie du Christ. Esse fora também o nome que a primeira Superiora teria gostado de adoptar. E essa coincidência faz surgir entre ambas uma especial corrente de solidariedade espiritual. Para dar o devido relevo a esta temática, Bernanos faz um grande desenvolvimento da cena da agonia de Madame de Croissy (que na novela de Gertrud von Le Fort é contada de modo muito sucinto). E, após a morte dela, cria um diálogo fundamental entre Blanche e Constance, em que esta fala da morte “errada” de Croissy, e de como este “erro” abrirá caminho para a morte “certa” de alguma outra pessoa.


[4] A referência à comunhão dos santos faz parte do texto do Símbolo dos Apóstolos, a mais antiga versão do Credo, que foi adaptada para a exposição doutrinal feita no Catecismo da Igreja Católica promulgado em 1992 pelo Papa João Paulo II.

[5] «Si c´est une pièce sur la peur, c´est également et surtout, à mon avis, une pièce sur la grâce et le transfert de la grâce». Francis Poulenc, Entretiens avec Claude Rostand, Paris, Julliard, 1954, p. 213.


Da estreita compenetração desta obra com a vida do próprio Bernanos nos dá Albert Béguin um testemunho bem elucidativo no texto intitulado A génese dos “Diálogos das Carmelitas” inserido no programa dos já referidos espectáculos no Teatro D. Maria II: «O seu encontro com as Carmelitas de Compiègne teve para ele um sentido ainda mais profundo. Elas surgiram para o assistir na sua agonia e para que a sua vida tormentosa acabasse na contemplação, finalmente tranquila, do mistério de que nunca desviara o olhar ansioso. Desde as primeiras cartas de Bernanos-criança até esta derradeira obra, através de todos os seus livros e de toda a sua vida, o tema do Medo constitui uma espécie de centro de gravidade para o qual o seu pensamento é irresistivelmente atraido. (…) Pode afirmar-se, sem exagero, que Bernanos nunca tentou outra coisa que não fosse sobrenaturalizar a angústia humana e conseguiu-o, compreendendo cada vez melhor que a Santa Agonia confere sentido a toda a agonia do homem ou, melhor, que ela é cada uma das nossas agonias. Nesta via espiritual, os diálogos que Bernanos escreveu de Janeiro a meados de Março de 1948 são a derradeira etapa. No próprio dia em que traçou as linhas finais, Bernanos recolheu ao leito para nunca mais se levantar e, menos de quatro meses depois, morria dizendo: «Eis-me possuído pela Santa Agonia».

Embora não em termos tão radicais, houve também uma muito especial compenetração vivencial do compositor Francis Poulenc com esta obra de Bernanos.

 

Francis Poulenc e o seu universo estético

Francis Poulenc (1899-1963) faz parte do chamado “Grupo dos Seis” surgido em Paris nos anos 20, que englobava também Darius Milhaud (1892-1974), Arthur Honegger (1892-1955), Georges Auric (1899-1983), GermaineTailleferre (1892-1983) e Louis Durey (1888-1979). Estes compositores não formaram uma “escola”, até porque eram personalidades artísticas bem diferenciadas. Para além de uma relação pessoal de amizade, o que tinham em comum era o propósito de cultivar uma estética “objectiva” que reagisse contra uma dupla herança recebida do final do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX: o romantismo wagneriano e o impropriamente chamado impressionismo. Tiveram inicialmente uma estreita ligação intelectual com Jean Cocteau e alguma influência de Erik Satie. A única actividade colectiva do Grupo foi Les Mariés de la Tour Eiffel, um espectáculo de Jean Cocteau com música dos “Seis” (mas sem Louis Durey), coreografia de Cocteau e Jean Börlin, levado à cena pelos Ballets Suédois de Rolf de Maré no Théâtre des Champs Élysées a 18 de Junho de 1921.

Francis Poulenc é uma personalidade bem representativa de uma sensibilidade musical tipicamente francesa. Há na sua obra duas facetas contrastantes, que por vezes se interpenetram: uma ligeira, sorridente, irónica; outra séria, por vezes mesmo austera, e também com uma derivante religiosa. Em ambas essas facetas sempre existe uma extrema elegância e um melodismo requintado. Poulenc mantém-se basicamente dentro das coordenadas do tonalismo e do modalismo, com utilização da dissonância sempre que esta se torna necessária para enfatizar alguns efeitos expressivos.

Num período histórico em que se superexaltam as inovações da linguagem, Poulenc recusa-se a tentar inventar ou a deixar-se enquadrar num “sistema” (para empregar a sua própria expressão), e permanece serenamente fiel apenas a si mesmo. A este respeito, são sumamente expressivas estas suas palavras: «Sei muito bem que não sou desses músicos que terão inovado no plano harmónico como Igor [Stravinsky], Ravel ou Debussy, mas penso que há lugar para música nova que se contente com os acordes dos outros» [6]. De facto, com o seu muito especial dom de invenção melódica, a sua mestria na arte da modulação, e o seu excepcional talento para relacionar música e palavra, Poulenc criou um universo musical e musical-poético que lhe é próprio e inconfundível.

Da produção “profana” de Poulenc destacam-se as canções para voz e piano (em francês denominadas mélodies), entre elas assumindo particular relevo as baseadas em poemas de Guilllaume Apollinaire e Paul Eluard; peças para piano e para agrupamentos de câmara; o Concert Champêtre para cravo orquestra (1927-28), o Concerto para dois pianos e orquestra (1932), o Concerto para órgão, cordas e timbales (1938), a Sinfonietta para orquestra (1947), o Concerto para piano e orquestra (1949); o bailado Les Biches (1924); a cantata Figure humaine para duplo coro “a cappella” com texto de Paul Eluard (1943), as óperas Les mamelles de Tirésias (1944) e La Voix humaine (1959) sobre textos, respectivamente, de Apollinaire e Cocteau; e o monólogo para soprano e orquestra La Dame de Monte Carlo (1961), também sobre texto de Cocteau.

Entretanto, a partir de 1936, emerge na obra de Poulenc uma intensa manifestação de religiosidade católica. Esta viragem fica a dever-se ao choque emocional provocado pela morte súbita, num acidente de viação, de um seu amigo, o compositor Pierre-Octave Ferroud, e uma subsequente visita ao santuário mariano da Virgem Negra em Rocamadour. Mais do que uma conversão, cabe falar de reconversão, pois Poulenc, a este respeito, fala de um retorno à fé da sua infância.

Vai assim surgindo regularmente, até ao final da vida do compositor, uma série de obras de inspiração e conteúdo directamente religiosos: entre outras, Litanies a la Virge Noire (1936) para coro feminino e órgão; Missa em Sol Maior (1937), Quatre Motets pour un temps de Pénitence (1938-39), Quatre Petites Priéres de Saint François d´Assise (1948) e Quatre Motets pour le temps de Nöel (1952) para coro “a cappella”; Stabat Mater (1950) e Gloria (1959) para soprano, coro e orquestra; Sept Répons des Ténèbres (1961) para soprano (voz branca), coro infantil, coro masculino e orquestra. A este grupo de obras deverá juntar-se a ópera Dialogues des Carmélites (1957) sobre texto de Georges Bernanos.


[6] Carta a André Schaeffner (Outubro 1942) in Francis Poulenc, Correspondance 1910-1963, Paris, Fayard, 1994, p. 532.


As Carmelitas de Poulenc

Tudo começou por uma inesperada encomenda da editora Ricordi de Milão, para compor uma obra baseada na obra de Bernanos, a ser estreada no Teatro alla Scala. Poulenc, que tinha lido o texto e assistido a duas representações da sua versão teatral, aceitou a proposta e começou quase imediatamente a trabalhar com entusiasmo, e mesmo apaixonamento. Em várias das suas cartas deste período manifestou a sua profunda identificação com a temática da obra, e o seu especial envolvimento emocional com as personagens de Blanche e Constance. Para a elaboração do libreto recorreu exclusivamente ao texto de Bernanos, submetendo-o no entanto a numerosos cortes, por uma razão funcional de duração teatral-operática. Mas manteve, e fez com que ganhe ainda mais força, tudo o que é essencial em Bernanos.

O essencial do processo criativo decorreu entre Agosto de 1953 e Agosto de 1955, mas a orquestração só ficou concluida em Junho do ano seguinte. Este processo foi apenas pontualmente interrompido por motivo de uma crise depressiva, e também perturbado por um problema respeitante a direitos de autor. Ao longo deste período, Poulenc manteve uma intensa correspondência com o barítono Pierre Bernac (com quem, desde 1935, formara um duo de canto e piano), dando-lhe conta do andamento do seu trabalho e pedindo-lhe opinião sobre questões de prosódia e de tessitura das vozes a utilizar.

A ópera teve uma primeira apresentação, em língua italiana (tradução de Flavio Testi), no Scala de Milão, a 26 de Janeiro de 1957, com direcção musical de Nino Sanzogno, encenação de Margherita Wallmann, cenografia e figurinos de Georges Wakhevitch. O trabalho de produção foi totalmente controlado por Guido Valcarenghi na sua qualidade de director da editora Ricordi. E Poulenc viu-se forçado a permanecer relativamente afastado.

Em contrapartida, pôde envolver-se por completo na produção francesa, que teve estreia na Ópera de Paris, a 21 de Junho de 1957. Interveio em tudo, desde a escolha dos cantores até pormenores de encenação e cenografia. Para a protagonista, teve a colaboração da cantora que considerava a sua intérprete ideal, Denise Duval, «a única Blanche de acordo com o meu coração» [7]. Do restante elenco fizeram parte Denise Scharley (Madame de Croissy), Régine Crespin (Madame Lidoine), Rita Gorr (Mère Marie) , Liliane Berton (Constance), Xavier Depraz (Marquis de la Force) e Jean Giraudeau (Chevalier de la Force). O maestro foi Pierre Dervaux, e o encenador Maurice Jacquemont. Suzanne Lalique foi a responsável pela cenografia (além dos figurinos), que Poulenc apreciou especialmente pela sua sobriedade, em confronto com a de Milão que lhe tinha parecido demasiado espectacular.


[7] Carta a Georges Hirsch, administrador da Ópera de Paris (15 Junho de 1956), in Francis Poulenc, Correspondance 1910-1963, edição citada, p. 838. Denise Duval tinha iniciado a colaboração com Poulenc em Les mamelles de Tirésias, e será especialmente para ela que Poulenc escreverá La Voix humaine e La Dame de Monte Carlo.


A partitura de Dialogues des Carmélites é encimada por uma dedicatória nos seguintes termos: «à memória de MINHA MÃE / que me revelou a música / de CLAUDE DEBUSSY, que me deu o gosto de a escrever / de CLAUDIO MONTEVERDI, GIUSEPPE VERDI, MODESTE MUSSORGSKY / que aqui me serviram como modelos».

Estas palavras são paradigmaticamente elucidativas sobre o critério que norteou a criação da obra. Poulenc conferiu uma prioridade absoluta à inteligibilidade do texto e à sua naturalidade expressiva. Explica, a este propósito: «Não posso pensar em abafar as palavras, tão carregadas de sentido, de Bernanos sob uma avalanche orquestral. Eis porque penso incessantemente em Monteverdi» [8].

A orquestra, muito rica em cores tímbricas, serve essencialmente para criar ambiências, para iluminar a voz humana sem nunca a dominar. Por vezes, permanece mesmo em silêncio para deixar a voz em plena autonomia. O que não implica que esteja reduzida a um plano secundário. Pois fica totalmente protagonista nos prelúdios e alguns interlúdios que, respectivamente, introduzem ou separam os quadros. Com especial destaque para o Prelúdio que antecede o quadro final do 3º Acto, com o seu carácter de marcha para o cadafalso, simultaneamente solene e sinistra.

É também à orquestra que cabe apresentar os temas recorrentes mediante os quais Poulenc conferiu uma grande unidade ao conjunto do discurso musical. Trata-se de temas musicais correspondentes a personagens, sentimentos e situações, não sendo porém motivos condutores (leitmotive) no sentido wagneriano [9].

Mas o que, de facto, é mais importante na estrutura musical de Dialogues des Carmélites é o modo como Poulenc exercita em grau máximo a sua arte de expressão musical em íntima relação com a palavra, na língua francesa. Uma relação que, ao longo de quatro décadas, ficou exemplarmente plasmada num total de 137 mélodies (segundo a classificação feita por Bernac), várias das quais agrupadas em ciclos [10].

Para convenientemente alcançar o objectivo da perfeita inteligibilidade do texto, para as vozes solistas Poulenc opta por uma escrita silábica. E oscila entre o recitativo e o arioso, com excepção de dois momentos: no 3º Quadro do 2º Acto, o dueto, de expressão desgarradoramente apaixonada, de Blanche e do Irmão; e, no 3º Quadro do 3º Acto, o solo da nova Madre Superiora, Madame Lidoine, que pode considerar-se uma ária no sentido tradicional. As vozes solistas nunca se sobrepõem.


[8] Francis Poulenc, Entretiens avec Claude Rostand, edição citada, p.212.
[9] Uma classificação possível dos temas musicais de Dialogues des Carmélites encontra-se na análise (Comentaires littéraire et musical) feita por Jean de Solliers no nº 52 da revista L´Avant-Scène Opéra, Paris, Maio 1983. Texto reeditado (com o título Introduction et Guide d´écoute) no nº 257 da mesma revista, Julho-Agosto 2010.
[10] Pierre Bernac fez um estudo particularmente autorizado e rigoroso da produção de Poulenc nesta área, no livro Francis Poulenc et ses mélodies, Paris, Buchet/Chastel, 1978.


Há sobreposição apenas nas breves, episódicas, intervenções do coro da multidão, e sobretudo nos três cânticos religiosos em latim entoados conjuntamente pelas carmelitas: Ave Maria na cerimónia da prestação de obediência à nova Superiora (2º Quadro do 2º Acto), Ave Verum (em alternância com o solo do capelão) após a celebração da última Missa (4º Quadro do 2º Acto), e Salve Regina (4º Quadro do 3º Acto).

Henri Hell, autor de uma das principais obras de referência sobre Poulenc, não hesita em considerar que a compenetração entre o texto de Bernanos e a música de Poulenc se situa ao mesmo nível do que sucede nos casos de Maeterlinck e Debussy em Pelléas et Mélisande, e de Georg Büchner e Alban Berg em Wozzeck. Fala, a este propósito, de casos excepcionais de «rencontre d´un texte et de son musicien» [11].

Três cenas fulcrais

Há em Dialogues des Carmélites três cenas fulcrais no plano dramatúrgico, estreitamente relacionadas entre si: a morte da primeira Madre Superiora (4º Quadro do 1º Acto), o diálogo entre Constance e Blanche após essa morte (Interlúdio I do 2º Acto), e a cena final (4º Quadro do 3º Acto).

A primeira Superiora, Madame de Croissy, com o corpo roído por uma doença causadora de dores que ela não consegue suportar, tem uma morte horrenda e imprópria da sua condição. Tal como ela própria confessa a Madre Marie: «Estou sozinha, absolutamente sozinha, sem nenhuma consolação (…) Deus tornou-se uma sombra… Ai de mim! Trinta anos de vida em religião, doze anos como Superiora. Meditei sobre a morte em cada hora da minha vida, e agora isso não me serve de nada». À jovem e recém-chegada Blanche, que considera como a mais querida das suas filhas espirituais, lamenta-se de não ter mais nada para oferecer do que «uma morte muito pobre». E, entre a angústia e um desespero quase demenciais, as suas derradeiras palavras/gritos são: «morte… medo da morte».

Régine Crespin, que interpretou este papel ao longo de doze anos, deixou-nos um depoimento impressionante sobre esta cena: «Uma morte assim, nunca a tinha encontrado; julgo que é única na história da ópera. E, no entanto, tantas vezes morri em cena! Mas nunca deste modo (…) uma morte violentamente rejeitada, renegada, desesperadamente rechaçada… Uma morte sofrida… Dido e Tosca suicidam-se: aceitam e escolhem elas próprias a morte. Desdémona deixa-se estrangular, e Carmen apunhalar. Mas eu diria que estas são mortes de teatro. Não estão impregnadas de revolta como esta última etapa da decadência física a que chega Madame de Croissy.


[11] Henri Hell, Francis Poulenc- Musicien Français, Paris, Fayard, 1978, pp. 257-259.


Mesmo Mimi e Violetta, igualmente debilitadas no corpo, não manifestam este horror absoluto em relação ao seu fim»[12].

Esta morte tão singular é objecto de um comentário feito por Constance em diálogo com Blanche no Interlúdio I do 2º Acto. Constance acha muito estranho que a Superiora tenha morrido de tão má maneira. «Dir-se-ia que Deus se enganou de morte, tal como acontece quando no vestiário nos dão uma peça de roupa trocada. Sim, esta devia ser a morte de outra; foi uma morte demasiado pequena para ela, que não conseguia sequer enfiar as mangas». E Constance conclui o seu comentário com palavras onde se contém exactamente o cerne do sentido de toda a obra: «Isto quer dizer que essa outra, quando chegar a hora da sua morte, se surpreenderá por entrar nela tão facilmente (…) Não morremos cada um para si mesmo, morremos uns pelos outros, ou mesmo – quem sabe? – uns em vez dos outros». Estas últimas palavras são uma paráfrase de um excerto da Epístola de São Paulo aos Romanos, capítulo 14, versículos 7-8 [13], em que, em termos bernanosianos, se traduz a doutrina católica da comunhão dos santos levada ao extremo da permuta de situações vivenciais.

A substituição pressentida por Constance vem a realizar-se na cena final, por certo um dos mais belos finais de toda a história do género operático. As Carmelitas sobem, uma a uma, ao cadafalso, enquanto cantam o hino Salve Regina. A música distribui-se por dois planos espaciais. Ouve-se simultaneamente o coro da multidão que não pronuncia palavras, apenas vocaliza sobre uma melodia totalmente diferente. Musicalmente a multidão está aí apenas como “pano de fundo”.

A cada golpe de guilhotina, as vozes do pequeno coro das carmelitas vão-se calando uma a uma. Poulenc introduz aqui uma admirável inovação no plano dramatúrgico. Em Bernanos não se diz quem é a (pen)última a subir ao cadafalso. Mas Poulenc especifica que se trata de Constance, precisamente a única que nunca deixara de acreditar que Blanche regressaria no momento decisivo. Ao cantar a invocação O clemens, Constance avista Blanche que irrompe de entre a multidão para vir serenamente morrer ao lado das suas irmãs, cantando a última estrofe do hino Veni Creator. Ainda da responsabilidade criadora de Poulenc é o doce sorriso de Constance e o mútuo olhar de compenetração espiritual entre ela e Blanche.

«Esta devia ser a morte de outra», comentara Constance após a morte da primeira Madre Superiora. O mesmo se poderá agora dizer de Blanche: a sua morte é a que deveria ter coroado a vida abnegada da Superiora. Temos agora a prova de que, com o oferecimento da sua «morte muito pobre», Madame de Croissy obteve para Blanche a graça da libertação do Medo, a graça de morrer em plena serenidade de correspondência ao chamamento de Deus. Le transfert de la grâce está consumado.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia


[12] Régine Crespin, D´une Prieure à l´autre in L´Avant-Scéne Opéra nº 52, edição citada, p. 107.
Texto reeditado no nº 257 da mesma revista.

[13] «Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo. De facto, se vivemos, vivemos para o Senhor; se morremos, morremos para o Senhor».


 

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